Introdução
A doença de Behçet (DB) é uma vasculite vascular sistêmica variável que envolve a pele, mucosa, articulações, olhos, artérias, veias, sistema nervoso e sistema gastrointestinal.
Os critérios do International Study Group (ISG) para o diagnóstico da Doença de Behçet foram criados em 1990 e incluíam ulcerações orais recorrentes, além de qualquer um dos seguintes: ulcerações genitais, lesões oculares típicas (uveíte anterior, uveíte posterior ou infiltrado celular do vítreo ao exame com lâmpada de fenda e vasculite retiniana), lesões cutâneas típicas (pseudo-foliculite, lesões papulopustulares, nódulos acneiformes em pacientes pós-adolescentes que não estão recebendo corticosteroides e eritema nodoso) ou um teste de patergia positivo (quando uma pústula estéril se desenvolve no local de uma picada de agulha estéril 24–48 horas depois).
Em 2014, foram criados os Critérios Internacionais para a Doença de Behçet (ICBD), que incluíam aftose oral, aftose genital, lesões oculares (uveíte anterior, uveíte posterior ou vasculite retiniana), manifestações neurológicas, lesões cutâneas (pseudo-foliculite, aftose cutânea, eritema nodoso) e manifestações vasculares (trombose arterial, trombose de grandes veias, flebite ou flebite superficial). A aftose oral, aftose genital e as lesões oculares recebiam 2 pontos cada, enquanto 1 ponto era atribuído a cada uma das lesões cutâneas, manifestações vasculares e manifestações neurológicas. Os critérios ICBD requerem uma pontuação de ≥4 pontos para o diagnóstico de “BD provável”, com sensibilidade de 94,8% e especificidade de 90,5%.
International Consensus Recommendation (ICR) propôs critérios para o diagnóstico de Neuro-Behçet (NDB) em 2014.
Os critérios ICR para NDB definitivo exigiam o cumprimento de todos os seguintes critérios: (1) satisfazer os critérios ISG para DB, (2) presença de uma síndrome neurológica (com sinais neurológicos objetivos) reconhecida como causada por DB e apoiada por anormalidades relevantes e características vistas em neuroimagem ou no líquido cefalorraquidiano (LCR), ou em ambos, e (3) nenhuma explicação melhor para os achados neurológicos.
NDB provável atende a um dos seguintes dois critérios na ausência de uma explicação melhor para os achados neurológicos: (1) Síndrome neurológica como no NDB definitivo, com características sistêmicas de DB, mas não satisfazendo os critérios ISG. (2) Uma síndrome neurológica não característica ocorrendo no contexto de DB suportado pelos critérios ISG.
O objetivo é ajudar os clínicos a diagnosticar pacientes com NDB com certeza, identificando as síndromes clínicas reconhecidas (apresentações) e excluindo imitações.
A prevalência do acometimento neurológico no Behçet é altamente variável nos estudos, dados mais recentes sugerem uma prevalência entre 3% e 9% de pacientes com doença de Behçet.
A inflamação parenquimatosa é considerada o resultado de vasculite de pequenos vasos, causando dano axonal e gliose e tipicamente envolvendo o tronco cerebral na maioria dos casos de NDB parenquimatoso (25%–50%).
As complicações vasculares geralmente se apresentam como trombose do seio venoso cerebral (TSVC) devido à ativação das células endoteliais dos grandes vasos, embora também possam se apresentar como aneurismas relacionados à perivasculite dos vasa nervorum.
Manifestações
Síndromes neurológicas reconhecidas:
- Síndrome parenquimatosa (uma ou mais das seguintes apresentações no primeiro/subsequente(s) ataque(s) ou progressão)
- Tronco cerebral: sintomas e sinais de envolvimento do tronco cerebral, incluindo oftalmoparesia, neuropatia craniana, disfunção cerebelar ou piramidal.
- Multifocal (difuso): combinação variável de sinais e sintomas do tronco cerebral, envolvimento cerebral ou da medula espinhal
- Mielopatia
- Cerebral: sintomas e sinais sugestivos de envolvimento hemisférico cerebral, incluindo encefalopatia, hemiparesia, perda hemissensorial, convulsões e disfagia, e alterações mentais, incluindo disfunção cognitiva e psicose
- Neuropatia óptica
Síndromes não parenquimatosas
- Trombose venosa cerebral
- Síndrome de hipertensão intracraniana (pseudotumor cerebral)
- Síndrome meníngea aguda
- Aneurisma intracraniano
- Aneurisma/dissecção extracraniana cervical
Sistema nervoso periférico (relação com DB incerta)
- Neuropatia periférica
- Mononeurite múltipla
- Neuropatia autonômica
A BD parenquimatosa geralmente se apresenta de forma subaguda com sintomas que incluem cefaleia, disartria, ataxia, neuropatias cranianas ou hemiparesia, embora alterações cognitivo-comportamentais e sinais extrapiramidais também possam ocorrer.
Quando a TVSC ocorre na doença de Behçet, os sintomas apresentados são geralmente aqueles de aumento da pressão intracraniana ou déficits neurológicos focais e convulsões
A cefaleia é o sintoma neurológico mais comum em pacientes com DB. A maioria dessas cefaleias é devida a distúrbios primários de cefaleia, comumente enxaqueca e cefaleias tensionais
Anormalidades assintomáticas em exames neurológicos, neuroimagem, neuropsicologia ou testes de neurofisiologia são chamados de NDB assintomáticos.
Diagnóstico
É importante considerar NDB em um paciente neurológico que tenha úlceras orais ou genitais recorrentes, uveíte ou outras características sistêmicas de DB.
Existem dois subtipos principais de NBD: parenquimatoso, um processo inflamatório meningoencefalítico, e não parenquimatoso, que ocorre secundariamente ao envolvimento vascular.
Eles diferem por características clínicas, laboratoriais, neurorradiológicas, patológicas e prognósticas.
NDB parenquimatoso geralmente se apresenta com um início subagudo de síndrome do tronco cerebral com ou sem outras características, síndrome hemisférica cerebral ou da medula espinhal, e as características incluirão fraqueza piramidal, alterações comportamentais, dores de cabeça, oftalmoplegia e alterações esfincterianas.
NDB parenquimatosa geralmente segue um padrão de remissão-recaída ou um curso progressivo primário/secundário.
NDB não parenquimatoso comumente se apresenta com dor de cabeça e características visuais secundárias à hipertensão intracraniana, geralmente devido à trombose venosa cerebral. Também pode se apresentar como um acidente vascular cerebral agudo relacionado à trombose arterial, dissecção ou aneurisma, embora isso seja incomum
A doença não parenquimatosa pode ser monofásica, mas podem ocorrer recorrências.
Uma apresentação mista de doença parenquimatosa e não parenquimatosa pode ocorrer.
Considerar a NBD no diagnóstico diferencial de esclerose múltipla, acidente vascular cerebral que afeta os jovens, hipertensão intracraniana, meningoencefalite e mielite. Pode ser diferenciado de seus imitadores por uma combinação de achados neurológicos clínicos e paraclínicos característicos, além das características sistêmicas associadas.
Neuroimagem
A neuroimagem tem um papel significativo no diagnóstico de NBD; a ressonância magnética é a modalidade de neuroimagem padrão-ouro
Lesões agudas/subagudas são hipointensas a isointensas em imagens ponderadas em T1 (T1W), comumente realçadas com contraste em imagens Gad-T1W, são hiperintensas em imagens T2W e FLAIR, hiperintensas em imagens ponderadas em difusão e mostram um coeficiente de difusão aparente (ADC) restrito.
Na fase crônica, lesões menores podem ser vistas, geralmente sem realce, mas podem se resolver completamente. Pode haver evidência de atrofia, especialmente no tronco cerebral. Lesões inespecíficas da substância branca podem ser vistas. As lesões NDB parenquimatosas crônicas são predominantemente subcorticais.
Localização: depende da apresentação clínica.
O tronco cerebral é o local típico de predileção, as lesões geralmente envolvem a ponte, podem se estender para cima e envolver o mesencéfalo, os gânglios da base e o diencéfalo. As lesões do tronco cerebral-tálamo-gânglios da base, no contexto clínico adequado, podem apoiar fortemente o diagnóstico de NDB parenquimatoso agudo/subagudo.
Com apresentação cerebral, múltiplas lesões pequenas de substância branca sem uma clara predisposição para regiões periventriculares podem ser vistas. Lesões isoladas do hemisfério cerebral podem ser vistas, o que precisa de diferenciação de tumor, abscesso e cistos congênitos.
Lesões inflamatórias únicas ou múltiplas de comprimento variável envolvendo a medula cervical ou torácica podem ser vistas, principalmente na presença de tronco cerebral, gânglios da base ou lesões cerebrais. Lesões isoladas da medula espinhal são raras.
Já nas alteração não parenquimatosas, a venografia por RM ou TC mostra evidências de trombose do seio cerebral ou da veia. Exame normal pode ser encontrado nas síndroms de hipertensão intracraniana. O realce meníngeo é visto na síndrome meníngea aguda, principalmente quando o exame é contrastado.
Líquido cefalorraquidiano
Os constituintes do líquido cefalorraquidiano são alterados em cerca de 70–80% dos pacientes com NBD parenquimatosa. A proteína do LCR é modestamente elevada, contagem de células do LCR é elevada em 60–80% dos casos podendo haver aumento de neutrófilo e linfócitos, glicose geralmente normal.
Outros exames
Teste de patergia: hiperreatividade não específica da pele ao trauma, como uma picada de agulha. Um teste positivo é definido como uma pápula ou pústula que normalmente aparece 24–48 h após uma injeção intradérmica na pele com uma agulha de calibre 20. Testes falso-positivos podem ser observados em pioderma gangrenoso, síndrome de Sweet, doenças inflamatórias intestinais, febre familiar do Mediterrâneo, leucemia mieloide aguda e tratamento com interferon alfa.
A prevalência de HLA-B51 varia em todo o mundo, sendo maior em populações asiáticas. No geral, o genótipo HLA B51 é visto em 40–65% dos pacientes diagnosticados com DB e em 10–20% dos indivíduos saudáveis.
Os testes neurofisiológicos podem ser úteis se houver suspeita de envolvimento do sistema nervoso periférico ou do nervo óptico. O potencial evocado visual (PEV) pode detectar envolvimento do nervo óptico
VHS, PCR e citocinas inflamatórias são marcadores não específicos de inflamação; podem estar elevados na apresentação neurológica, mas têm valor limitado
Diagnóstico diferencial
Esclerose múltipla, outras desordens inflamatórias sistêmicas (sarcoidose , lúpus eritematosos sistêmico, doença de Sjögren), linfoma, infecção e efeito colateral de medicamentos.
Tratamento
Ausência de ensaios controlados ou comparativos.
Parenquimatoso
Pulso de corticoide, com retirada gradual de corticoide oral. Glicocorticoides em altas doses (metilprednisolona intravenosa 1 g/dia por até 7 dias) seguidos por uma redução lenta (prednisona oral ou prednisolona na dose de 1 mg/kg/dia por um mês e reduzida em 5–10 mg a cada 10–15 dias).
Glicocorticoides em altas doses devem ser iniciados juntamente com um imunossupressor como a azatioprina, as alternativas incluem micofenolato mofetil, metotrexato e ciclofosfamida.
Pacientes que têm envolvimento parenquimatoso grave no início, ou aqueles que têm doença persistente/recidivante apesar de corticosteroides associado a azatioprina, ou pacientes com envolvimento crônico progressivo do sistema nervoso ( forma mais grave de envolvimento parenquimatoso) podem se beneficiar de anticorpos anti-TNF monoclonais inclusive como primeira linha de tratamento.
Infliximabe ( como opção adalimumabe), quando as terapias de primeira linha forem ineficazes ou intoleráveis e quando a doença estiver em recaída ou apresentando características neurológicas ou sistêmicas agressivas.
Atenção para ciclosporina: potencial associação com complicações neurológicas. Deve ser evitada em pacientes com histórico de neuro Behçet e a medicação deve ser interrompida quando pacientes com DB desenvolverem características neurológicas sugestivas de envolvimento do SNC parenquimatoso.
Trombose venosa central
Anticoagulação é controversa
Contra o uso: trombose devido a um processo inflamatório e o trombo formado é firmemente aderente à parede do vaso, além disso, a possibilidade de sangramento após a ruptura de um aneurisma coexistente.
A favor do uso: preferem usar anticoagulantes, após excluir aneurismas sistêmicos, pelo menos para reduzir o risco de extensão adicional do coágulo no sistema venoso cerebral. A duração do uso de anticoagulantes varia, mas geralmente é de cerca de 3 a 6 meses em casos não complicados
Iniciar corticoterapia em altas doses seguidos de redução gradual.
Não há dados mostrando o benefício de adicionar outro imunossupressor (além do corticoide) no primeiro episódio de trombose venosa cerebral, uma vez que as recaídas não são frequentes neste tipo de envolvimento. Porém, considerar uma terapia modificadora de doença, especialmente se houver histórico prévio de trombose venosa central, doença sistêmica ativa ou histórico de NDB parenquimatoso associado.
Aneurismas arteriais
Para aneurismas de artéria aórtica e periférica, o tratamento médico com ciclofosfamida e corticosteroides é necessário antes da intervenção para reparo. A cirurgia ou colocação de stent não deve ser adiada se o paciente for sintomático.
A ciclofosfamida pode ser administrada como pulsos intravenosos mensais e os glicocorticoides são geralmente administrados como três pulsos intravenosos sucessivos de metilprednisolona seguidos por prednisona/prednisolona oral na dose de 1 mg/kg/dia.
Para aneurismas pulmonares e de artéria periférica, a escolha da intervenção cirúrgica entre inserção de enxerto, ligadura e cirurgia de bypass pode ser feita de acordo com o tamanho e a localização do aneurisma e a experiência do cirurgião. Enxertos sintéticos devem ser preferidos, pois enxertos venosos têm maior risco de trombose em pacientes com DB.
Prognóstico
Apresentação no tronco cerebral ou na medula espinhal, recaídas frequentes, progressão precoce da doença e alta pleocitose no LCR são fatores de prognóstico ruim.
Incapacidade e status de dependência na apresentação inicial, um curso progressivo primário ou secundário, recaída durante a redução da dose de esteroides, febre, sinais meníngeos e envolvimento da bexiga mostraram uma possível associação com desfecho ruim, conforme definido por sobrevida ruim e status de dependência.
Referência
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