Vasculite urticariforme (UV) é uma vasculite rara de pequenos vasos que se apresenta com episódios recorrentes de lesões persistentes semelhantes a pápulas que se assemelham àquelas observadas na urticária espontânea crônica, mas tendem a persistir por mais de 24 horas.
Vasculites urticariformes podem ser dividias em normocomplementêmica (NUV), hipocomplementêmica (HUV) e como síndrome de vasculite urticariforme hipocomplemetêmica (SHUV).
A síndrome de vasculite urticariforme hipocomplementêmica (SHUV) ou síndrome de McDuffie, é um processo de doença raro que foi descrito pela primeira vez por McDuffie et al em 1973.
As principais manifestações da UV são lesões vasculíticas urticariformes crônicas, não pruriginosas, que persistem por mais de 24 horas ou recorrem em intervalos curtos.
Baixas medições de complemento sérico em pacientes indicam a ativação da via clássica, com níveis baixos de C1q, C4 e C3, variavelmente diminuídos. As precipitinas séricas de C1q foram identificadas e posteriormente confirmadas como sendo os autoanticorpos contra C1q (anti-C1q).
A HUV, conforme definida pela Chapel Hill Consensus Conference 2012, é uma vasculite rara caracterizada pela presença de anticorpos anti-C1q em mais da metade dos pacientes.
Biópsia de pele revela vasculite leucocitoclástica (VLC).
Principalmente a forma HUV limitada a pele, tem sido associada a doença do tecido conjuntivo, como lúpus eritematoso sistêmico (LES) e síndrome de Sjögren, paraproteinemia de imunoglobulina (Ig) M (síndrome de Schnitzler), infecções (hepatite B, mononucleose infecciosa) e sensibilidade a medicamentos.
As mulheres são mais frequentemente afetadas pela vasculite urticariforme, especialmente na quarta década de vida, com incidência nos Estados Unidos de 0,5 por 100.000 pessoas-ano.
– Vasculite urticariforme normocomplementêmica (NUV).
A NUV é tipicamente um subconjunto autolimitado de vasculite de hipersensibilidade, geralmente idiopática e benigna. A NUV pode ser vista como uma manifestação de angiite leucocitoclástica cutânea. Casos crônicos de NUV devem ser distinguidos cuidadosamente da urticária neutrofílica, que é uma forma persistente de urticária não associada à vasculite.
– Vasculite urticariforme hipocomplementêmica (HUV).
Duas categorias, de primária ou idiopática, geralmente não associada à doença sistêmica até recentemente, e secundária, que é provável ser um distúrbio crônico, frequentemente associada a uma doença inflamatória sistêmica.
A vasculite urticariforme hipocomplementêmica secundária é caracterizada por certas características sobrepostas do LES, incluindo baixo complemento sérico, autoanticorpos e uma dermatite de interface caracterizada pela deposição de imunorreagente (complemento e imunoglobulinas) na junção dermoepidérmica em um padrão essencialmente igual ao teste de banda lúpica
– Síndrome Vasculite urticariforme hipocomplementêmica (SHUV).
A SHUV é uma forma rara, distinta e potencialmente grave de UV com envolvimento multiorgânico.
Sua etiologia e ligação com outras doenças ainda são desconhecidas.
Ela está associada a uma série de sistemas orgânicos e caracterizada clinicamente por lesões cutâneas urticariformes persistentes, vasculite leucocitoclástica e uma variedade de manifestações sistêmicas, incluindo angioedema grave, edema laríngeo, inflamação ocular, artrite, artralgia, doença pulmonar obstrutiva, dor abdominal recorrente e glomerulonefrite.
A SHUV é considerada por alguns como uma doença imunológica independente do LES, devido ao número de casos relatados com ausência do antígeno nuclear anti-extraível clássico (FAN).
Fisiopatologia:
Entre as teorias estão uma série de mecanismos e patogêneses propostos, particularmente em relação a danos vasculares, anticorpos anti-C1q e associação a outras doenças.
Acredita-se que a vasculite urticariforme seja mediada por imunocomplexos e, como tal, é classificada como uma reação de hipersensibilidade do tipo III.
Entre os mecanismos de dano vascular, incluem-se: complexo imune, resposta de linfócitos T e anticorpo anti-C1q.
Complexo imune: a seguinte cascata de complexo autoimune humoral pode ser um possível mecanismo patológico para urticária, angioedema e doença pulmonar obstrutiva: C1q-precipitinas (C1q-p também referida como anti-C1qAb/C1q) compreendendo autoanticorpos IgG que se ligam à porção Fc, regiões semelhantes ao colágeno, da molécula C1, que então formam complexos imunes, ativa o sistema de complemento (C3a e C5a) pela via clássica dentro e ao redor dos vasos sanguíneos. Esta cascata gera tanto anafilatoxinas (permitindo a degranulação dos mastócitos) quanto regula positivamente quimiocinas e citocinas, que coletivamente contribuem para o aumento da permeabilidade vascular, quimiotaxia de células inflamatórias e deposição de complexos imunes que exacerbam ainda mais a destruição do tecido e o edema.
Resposta linfócito T: Foi demonstrado que C1q está envolvido na ativação e na inibição de células T. Complexos imunes na presença de C1q ativam células T. Além disso, o anti-C1q pode interferir na depuração de células apoptóticas, influenciando a indução e a expressão da autoimunidade.
Anticorpos anti-C1q: Além da ativação da cascata do complemento, descobriu-se que o C1q tem outras funções biológicas, incluindo um papel modulador nas funções celulares dentro da resposta imune adaptativa. Os anticorpos anti-C1q são encontrados em várias doenças autoimunes e podem ser encontrados em pacientes com LES mesmo quando nenhuma doença vascular está presente. O anticorpo anti-C1q, embora presente em 95 a 100 % dos pacientes com síndrome vasculite urticariforme hipocomplementêmica, não é específico, mas é considerado um marcador diagnóstico.
A causa da vasculite urticariforme é frequentemente desconhecida, mas houve inúmeros relatos de casos desencadeados por medicamentos, infecções, doença conjuntiva autoimune, distúrbios mielodisplásicos ou malignidade. Alguns medicamentos que foram implicados incluem cimetidina, diltiazem, iodeto de potássio, fluoxetina, anti-inflamatórios não esteroides, telmisartana, enalapril, levetiracetam. Infecções como estreptococos, tuberculose, hepatite B e C, vírus Epstein-Barr, micoplasma, COVID-19, influenza A/H1N1,tricomoníase e doença de Lyme.
Clinica
Lesões cutâneas semelhantes a urticárias (biópsia com vasculite leucocitoclástica
Pápulas generalizadas que duram mais de 24 horas e podem se resolver com hiperpigmentação pós-inflamatória. As pápulas persistem por mais de 48 horas, mas geralmente entre 24 a 72 horas (urticária comum geralmente se resolve dentro de 8 a 24 horas). As Lesões causam disestesia e menos comumente prurido. Têm uma predileção de surgir em qualquer lugar e tendem a ser centrípetas, favorecendo o tronco e as extremidades proximais.
Variam em média de 0,5 a 5 cm de diâmetro e podem estar associadas à púrpura palpável e petéquias, podendo deixar para trás uma pigmentação equimótica após a resolução. Essas pápulas são frequentemente não branqueáveis ou apenas parcialmente branqueáveis, mostrando uma área central vermelho-escura ou acastanhada.
A imuno-histoquímica demonstra depósitos de imunoglobulina e complemento nas paredes dos vasos ou no endotélio. Esses depósitos também ocorrem junto com a vasculite no LES, mas em pacientes com LES eles são tipicamente encontrados ao longo da membrana basal.
Fenômeno de Raynaud também pode ocorrer.
Angioedema: ocorre em até 50 por cento dos pacientes, frequentemente envolvendo os lábios, a língua, o tecido periorbital e as mãos.
Artralgia/artrite
Artralgia e artrite de várias articulações são as manifestações sistêmicas mais frequentes.
Normalmente, cotovelos, pulsos, joelhos e tornozelos são envolvidos. Deformidades articulares são possíveis, incluindo artropatia de Jaccoud (geralmente associada com valvulopatia).
Pulmão
O envolvimento pulmonar inclui dispneia, tosse, hemoptise, derrame pleural e DPOC. DPOC ocorre em 50% dos pacientes com vasculite urticariforme hipocomplementêmica.
A DPOC é progressiva e é a causa mais frequente de morte.
Embora o tabagismo acelere significativamente seu desenvolvimento, o DPOC pode ocorrer mesmo em não fumantes.
Gastrointestinal
Cerca de 30 % sofrem de sintomas gastrointestinais, como dor, náusea, vômito, diarreia, ascite em conexão com serosite, hepatomegalia, esplenomegalia e isquemia intestinal.
Envolvimento ocular:
Uveíte, conjuntivite e episclerite.
Pode ocorrer em até 30% dos pacientes com vasculite urticariforme hipocomplementêmica.
Envolvimento renal
O envolvimento renal é geralmente leve, podendo ocorrer em aproximadamente 20% dos pacientes com vasculite urticariforme hipocomplementêmica.
A glomerulonefrite membranoproliferativa é a mais comum.
A proteinúria e hematúria frequentemente encontradas com demonstração de acantócitos (sedimento nefrítico) são vistas histologicamente como glomerulonefrite membranosa, membranoproliferativa.
Biópsia: proteinúria (> 1 g/dia) ou na insuficiência renal progressiva aguda, ou crônica.
Cardíaco
O envolvimento cardíaco se apresenta na forma de anormalidades valvulares, insuficiência cardíaca congestiva e derrame pericárdico.
Sistema nervoso
Embora o sistema nervoso central seja raramente afetado, as manifestações neurológicas incluem transtorno convulsivo, mononeurite, paralisias do nervo craniano, neuropatia axonal, meningite asséptica, pseudotumor cerebral, mielite transversa e neuropatia periférica.
Diagnóstico
O diagnóstico de vasculite urticariforme é encontrado pela demonstração de vasculite leucocitoclástica em amostras de biópsia dérmica, que envolve uma reação leucocitoclástica, destruição da parede do vaso e depósitos de fibrinogênio. A análise imuno-histoquímica mostrará complexos imunes e complemento nos vasos sanguíneos.
De uma perspectiva prática, o diagnóstico de vasculite urticariforme normocomplementêmica e vasculite urticariforme hipocomplementêmica requer achados cutâneos e histopatológicos/imunofluorescência típicos juntamente com níveis de complemento normais ou reduzidos, respectivamente, enquanto o diagnóstico da síndrome da vasculite urticariforme hipocomplementêmica implica envolvimento multiorgânico.
Em relação à síndrome vasculite urticariforme hipocomplementêmica dois critérios principais (urticária recorrente por mais de seis meses e hipocomplementemia) e pelo menos dois critérios menores (vasculite leucocitoclástica na biópsia de pele, artralgias ou artrite, glomerulonefrite, inflamação ocular, dor abdominal e positividade do anticorpo anti-C1q com nível de C1q diminuído).
Os critérios de exclusão incluem crioglobulinemia (criócrito, >1%), título elevado de anticorpo anti-DNA fita dupla (dsDNA) ou anticorpos Sm, antigenemia do vírus da hepatite B, deficiência dos níveis de esterase C1 ou um defeito congênito do complemento.
Investigação laboratoriais: anti C1q, dosagem de complemento, VHS, anti – DNA, FAN, anti RO e LA, fator reumatoide, hemograma, urina 1, quantificação de proteina urinária, anticorpos anticitoplasmáticos de neutrófilos (ANCA), eletroforese de proteína e nível de creatinina sérica.
Se CH50 for menor que 10 unidades/mL, essa faixa é mais indicativa de uma deficiência hereditária. Os componentes do complemento C3 e C4 são reagentes de fase aguda, e os níveis desses componentes serão reduzidos, mas menos drasticamente, durante episódios inflamatórios em comparação com as medições de componentes de deficiência hereditária.
Histologia: lesões de vasculite urticariforme afetam as vênulas capilares e pós-capilares. Exame histopatológico das lesões urticariformes persistentes mostra infiltrado neutrofílico perivascular (ou, menos comumente, linfocítico) com necrose fibrinoide, evidência de vasculite leucocitoclástica com lesão das células endoteliais das vênulas pós-capilares e extravasamento de eritrócitos. Estudo de imunofluorescência direta demonstra deposição de complexo imune e complemento em um padrão granular dentro ou ao redor dos vasos sanguíneos na derme superior e uma deposição marcante de imunoglobulinas e complemento ao longo da junção dermoepidérmica.
Anticorpos anti-c1q são encontrados em cerca de 50% dos pacientes com vasculite urticariforme hipocomplementêmica e em praticamente todos os pacientes com síndrome da vasculite urticariforme hipocomplementêmica.
Diagnóstico diferencial
Distinguir entre urticária aguda e crônica é o primeiro passo quando se apresenta um possível caso de UV. Existem vários tipos de urticária, incluindo aquagênica, androgênica, por pressão, induzida pelo frio e colinérgica.
Algumas doenças que podem simular os sintomas: síndrome de Muckle-Wells; síndrome de Cogan; síndrome de Schnitzler; eritema migratório; penfigo bolhoso; lúpus eritematoso sistêmico; crioglobulinemias mistas; doença mista do tecido conjuntivo.
Tratamento
Devido à falta de grandes ensaios clínicos randomizados ou controlados avaliando a eficácia das terapias existentes, não existe um consenso claro sobre o melhor tratamento.
Lembrar de avaliar a associação da vasculite urticariforme com algum medicamento de uso contínuo, e suspender essa medicação.
Descartar neoplasia (associação 4,4% a 19%).
Para pacientes com apenas lesões cutâneas, o anti-histamínico é uma opção inicial, porém, com altas taxas, não consegue controlar a doença.
Corticosteroides são os medicamentos mais frequentemente administrados em pacientes com vasculite urticariforme, sozinhos ou em combinação com outros medicamentos, foram o tratamento mais eficaz.
Imunossupressores comumente usados: hidroxicloroquina, azatioprina, metotrexato, micofenolato, ciclofosfamida e ciclosporina. Colchicina e dapsona também são opções usadas, além de AINEs para quadro articular.
O uso de terapia biológica em uma revisão sistemática mostrou que quase todos os biológicos usados foram eficazes em 75% ou mais pacientes com UV, mas o pequeno número de pacientes tratados até agora fala a favor de pesquisas futuras para uma melhor avaliação. Omalizumabe (anti IgE), anti IL1 (anakinra, canaquinumabe) com alguns relatados de caso, anti-TNF (relatos de caso com etanercept e infliximabe), tocilizumabe, rituximabe (sendo este talvez uma das melhores opções para casos refratários).
Não há tratamento específico para SHUV, embora várias terapias tenham sido tentadas, nenhum consenso quanto a um regime terapêutico eficaz foi estabelecido. Os anti-histamínicos podem fornecer alívio temporário. Anti-inflamatórios não esteroides para alívio sintomático da dor nas articulações podem ser úteis.
Alguns casos de SHUV respondem a terapias comumente usadas no tratamento do LES.
Pacientes com quadro de glomerulonefrite ou outras formas de envolvimento grave de órgãos, podem exigir altas doses de glicocorticoides e agentes citotóxicos. O agente citotóxico de escolha inclui ciclofosfamida.
A plasmaférese e a imunoglobulina intravenosa (IVIG) foram propostas como alternativas valiosas a serem consideradas, particularmente nos casos com rápida deterioração da função renal ou glomerulonefrite crescente.
Referência:
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